Interseções - Poesias e psicanálise
Este espaço abriga poemas que atravessam o projeto.
Não se trata de uma coleção fechada, mas de um movimento —
um gesto em construção.
Os versos aqui reunidos foram escolhidos não por explicarem,
mas por reverberarem algo da experiência analítica.
Ainda não há palavras que os amarrem à teoria —
essas virão, talvez, quando couber.
Por enquanto, deixo-os assim:
como quem oferece silêncio antes da interpretação.
Outros poemas virão.
Este é um caminho que se escreve andando.
01.
Das Ilusões
Meu saco de ilusões, bem cedo tive-o.
Com ele subindo a ladeira da vida.
E, no entanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinairiamente sensaçao de alivío!
Mário Quintana
01.
Das Ilusões
Meu saco de ilusões, bem cedo tive-o.
Com ele subindo a ladeira da vida.
E, no entanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinairiamente sensaçao de alivío!
Mário Quintana
02.
Carrego Comigo
Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho.
Serão duas cartas?
será uma flor?
será um retrato?
um lenço talvez?
Já não me recordo
onde o encontrei.
Se foi um presente
ou se foi furtado.
Se os anjos desceram
trazendo-o nas mãos,
se boiava no rio,
se pairava no ar.
Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém,
ou se algo contém,
nunca saberei.
Como poderia
tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio
e também tão quente.
Ele arde nas mãos,
é doce ao meu tato.
Pronto me fascina
e me deixa triste.
Guardar um segredo
em si e consigo,
não querer sabê-lo
ou querer demais.
Guardar um segredo
de seus próprios olhos,
por baixo do sono,
atrás da lembrança.
A boca experiente
saúda os amigos.
Mão aperta mão,
peito se dilata.
Vem do mar o apelo,
vêm das coisas gritos.
O mundo te chama:
Carlos! Não respondes?
Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar.
Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
de jogá-lo ao fundo
da primeira vala.
Ou talvez queimá-lo:
cinzas se dispersam
e não fica sombra
sequer, nem remorso.
Ai, fardo sutil
que antes me carregas
do que és carregado,
para onde me levas?
Por que não me dizes
a palavra dura
oculta em teu seio,
carga intolerável?
Seguir-te submisso
por tanto caminho
sem saber de ti
senão que te sigo.
Se agora te abrisses
e te revelasses
mesmo em forma de erro,
que alívio seria!
Mas ficas fechado.
Carrego-te à noite
se vou para o baile.
De manhã te levo
para a escura fábrica
de negro subúrbio.
És, de fato, amigo
secreto e evidente.
Perder-te seria
perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre
mas levo uma coisa.
Não sei o que seja.
Eu não a escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.
Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.
Carlos Drummond de Andrade
03.
Mantendo o Silêncio
Agora contaremos até doze
e ficaremos todos quietos
por uma vez na face da terra,
não falemos em nenhuma língua,
paremos um segundo
e não movamos tanto os braços.
Seria um momento exótico
, sem pressa, sem motores;
estaríamos todos juntos
numa estranheza repentina.
Os pescadores no mar frio
não fariam mal às baleias
e o homem que coletava sal
não olharia para suas mãos machucadas.
Aqueles que preparam guerras verdes,
guerras com gás, guerras com fogo,
vitórias sem sobreviventes,
vestiriam roupas limpas
e andariam com seus irmãos
na sombra, sem fazer nada.
O que eu quero não deve ser confundido
com inatividade total.
A vida é o que importa;
não quero me envolver com a morte.
Se não fôssemos tão determinados
a manter nossas vidas em movimento,
e por uma vez não pudéssemos fazer nada,
talvez um silêncio profundo
pudesse interromper essa tristeza
de nunca nos compreendermos
e de nos ameaçarmos com a morte.
Talvez a Terra possa nos ensinar
como quando tudo parece morto
e depois se mostra vivo.
Agora eu vou contar até doze
e você fica quieto e eu vou embora.
Pablo Neruda
04.
Da Eterna Procura
Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.
Mario Quintana
05.
O Medo
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo…
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
Carlos Drummond de Andrade